O que a balança não mostra: desafios enfrentados pelo corpo e pela mente após a cirurgia bariátrica

cirurgia bariátrica
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Acompanhamento multidisciplinar é fundamental para que o paciente consiga sustentar a mudança de vida após a cirurgia bariátrica

Era maio de 2016. Quando Lucas Damasio subiu na balança pela última vez antes do procedimento para redução do estômago, aos 32 anos, o ponteiro marcava 154 kg. O peso estava prejudicando seus joelhos e demais articulações inferiores. E começando a causar outros problemas sérios à saúde. Um ano antes, o médico de família e de comunidade que o atendia já havia recomendado a cirurgia bariátrica. “Eu pedi um período de 12 meses para tentar emagrecer sem a intervenção, porém não tive um resultado significativo. Então, fiz a cirurgia”, conta o mestre em Gestão de Cooperativas e especialista em Marketing Estratégico que atua na Unimed do Estado do Paraná.

Lucas tinha receio de fazer o procedimento cirúrgico e tentou, ao máximo, evitá-lo. Sua principal dúvida era sobre o período de adaptação. De fato, os primeiros 15 dias de recuperação foram os mais difíceis, quando a alimentação era restrita a pequenas doses líquidas. “A privação da alimentação durante esse período provocou um choque que teve efeitos no humor e no emocional”, recorda. Nesse período, o apoio da esposa foi essencial. E logo os resultados da cirurgia começaram a aparecer. “Em pouco tempo eu perdi mais de 40 quilos e me sentia outra pessoa, com mais disposição e mobilidade”, revela.

No pré-operatório, além do acompanhamento do médico de família e da cirurgiã, ele teve consultas com uma nutricionista especializada e um psicólogo. Também frequentou um grupo de apoio com pessoas em fase de preparação para a cirurgia e participantes que já tinham executado o procedimento, com resultados satisfatórios. Após a cirurgia, além do retorno aos médicos, Lucas continuou indo à nutricionista, com quem se consulta periodicamente até hoje. “Por alguns relatos que obtive de pessoas que fizeram a cirurgia, considero que eu tive muita sorte no acompanhamento de todo o processo anterior e posterior à cirurgia”, afirma.

Lucas Damásio passou pelo procedimento em 2016. O método utilizado foi a gastroplastia em Y

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Como saber quem está preparado para a cirurgia?

Além da recomendação feita pelo cirurgião, o paciente precisa de laudo psiquiátrico para liberação do procedimento. “Na entrevista psiquiátrica, o que a gente avalia é o histórico do paciente, se já fez tratamento. E, no exame do estado mental, tenta-se avaliar aspectos do humor, se o paciente já teve ou apresenta algum quadro de ansiedade, depressão, bipolaridade ou psicose. Também vemos o histórico na família”, explica o psiquiatra Gustavo Sehnem. Outro aspecto importante nessa avaliação é compreender como a pessoa chegou à decisão de se submeter à cirurgia. “Se é algo que foi planejado ou se a decisão ocorreu de forma mais impulsiva ou por influência de alguém. Também é importante saber se conhece algum caso de sucesso e o que o motivou a realizar esse procedimento cirúrgico. É algo que tem que ser trabalhado e amadurecido”, alerta o profissional.

Gustavo Sehnem: é importante conhecer
o que motivou o paciente à cirurgia

No consultório, a psicóloga Jaqueline Vicelli testemunha diversos motivos que levam uma pessoa a optar pela cirurgia bariátrica. Seja pela indicação médica, com a compreensão dos riscos ocasionados pelo sobrepeso (hipertensão, diabetes, dificuldade de locomoção, etc.), seja pela ineficiência de outras estratégias para perda de peso, como dietas, uso de medicamentos e até do balão intragástrico. Por isso, a fase anterior ao procedimento é focada na conscientização. “É importante saber que a obesidade nem sempre está ligada apenas à alimentação. Outros fatores podem estar envolvidos, como fatores genéticos, ambientais, psicológicos e sociais. Por meio da cirurgia bariátrica, conseguimos promover o controle da obesidade e não a curar totalmente”, ressalta. Para que os resultados sejam satisfatórios, o paciente deverá assumir seus compromissos e responsabilidades. “Precisa estar consciente de que precisará de dedicação para desenvolver novos hábitos para o resto da sua vida”, destaca Jaqueline.

Ao orientar pacientes em preparação para a bariátrica, a nutricionista Gisele Farias procura deixar claro que a cirurgia não é o fim dos problemas, e sim o começo da solução. E que o emagrecimento é um processo. “Cabe ao nutricionista esclarecer o papel do hábito alimentar adequado e dos nutrientes na saúde física, mental e emocional. E também na prevenção das doenças. E não, simplesmente, o alimento que engorda ou emagrece”, reitera.

O caminho do pós-operatório

Assim como toda cirurgia, a bariátrica também pode ter complicações no ato cirúrgico. Mas esse número é considerado baixo, com uma média de 2% de incidência.

“Costumo explicar que, devido ao novo reservatório gástrico é preciso reiniciar a alimentação como se fosse um bebê”, compara a nutricionista Gisele. Nos primeiros 15 dias do pós-operatório, a dieta é baseada em líquidos, pobre em resíduos e em pequenos volumes (50 ml por refeição). Depois, a dieta torna-se cremosa e, em seguida, pastosa. Com 30 dias, evolui para branda, com consistência normal, porém com alimentos predominantemente cozidos e pobre em fibras. Somente próximo aos 90 dias de recuperação é que a dieta se normaliza, ajustada à nova realidade.

Gisele Farias: alguns pacientes não se conscientizam
sobre a necessidade de mudar os hábitos e
cuidar com as escolhas dos alimentos

Da perspectiva de quem passou pelas várias fases do processo, Lucas Damasio chama a atenção para o risco de recaída, quando não se está preparado. “A cirurgia bariátrica precisa vir acompanhada de uma mudança mental sobre a relação que temos com a comida, caso contrário, o indivíduo pode recuperar todo o peso que perdeu. E realmente recupera. Conheci pessoas com as quais isso aconteceu”, conta.

Por outro lado, há casos em que a quantidade de alimento não é o problema, mas sim o que é colocado no prato. “Alguns pacientes não se conscientizam sobre a necessidade de mudar os hábitos alimentares e cuidar com as escolhas dos alimentos. E isso pode refletir em deficiências nutricionais ou sintomas gastrointestinais após consumir alguns alimentos de baixo valor nutricional”, observa Gisele Farias.

Embora a avaliação multidisciplinar faça parte do protocolo, ainda há a chance de que o paciente que se encontrava em um quadro de obesidade apresente um comportamento compulsivo latente. “Pela minha experiência, atendendo pacientes bariátricos há mais de 10 anos, percebo que uma das maiores preocupações em fazer a cirurgia é desenvolver algum comportamento inadequado após a operação como: quadros de depressão, consumo excessivo de álcool e cigarro”, compartilha a psicóloga Jaqueline.

Jaqueline Vicelli: nem sempre a obesidade está ligar
apenas à alimentação, pode haver outros fatores

Gustavo Sehnem, que é especialista em dependência química, trabalha tanto em ambulatório quanto com internamento. Em seu dia a dia de clínica, é alta a incidência de casos de pacientes pós-bariátrica com quadros de dependência de álcool. “A gente vê pessoas que se submetem à cirurgia e depois não conseguem comer grande quantidade, mas líquido vai. É quando o álcool pode acabar se tornando muito presente”, esclarece. Quando isso acontece, o paciente é tratado como um compulsivo, incluindo a atuação de profissionais para ajudá-lo a se perceber, se monitorar e identificar seus gatilhos.

“Infelizmente, essas situações são reais, porém, quanto mais bem informado e acompanhado de um psicólogo especializado na área, menores as chances de isso ocorrer. O papel do psicólogo é identificar e auxiliar o paciente a trabalhar os sentimentos e os eventuais transtornos que possam aparecer”, enfatiza Jaqueline.

Transferência de compulsão

Durante a preparação para a bariátrica, nem sempre é possível identificar a predisposição para o desenvolvimento de uma nova compulsão. Isso pode ocorrer gradualmente, conforme o paciente operado passa a descobrir novos prazeres. Alguns exemplos são: jogos, compras, tabagismo, álcool, uso de medicamentos, sexo e até mesmo a prática esportiva em excesso.

“Um estômago menor não fará sumir a compulsão. O que ocorre com algumas pessoas é que, uma vez que estejam limitando a ingestão de alimentos, o prazer de comer poderá não ser como antes. Com isso, alguns pacientes substituem a compulsão alimentar por outra que lhes trará prazer”, descreve a psicóloga Jaqueline Vicelli.

Além disso, após o emagrecimento, algumas pessoas enfrentam uma profunda frustração ao se darem conta de que a obesidade não era o único problema de suas vidas. “Após a cirurgia, assumir um novo corpo e novas expectativas depositadas nesse novo eu, superar o que passou e aceitar a nova condição, pode ser assustador. Alguns pacientes podem evoluir para um quadro depressivo ou de ansiedade. Não podemos afirmar que a cirurgia bariátrica é a responsável pelo surgimento dessas psicopatologias no paciente. No entanto, sabemos que as inúmeras mudanças em tão pouco tempo podem contribuir para um sentimento de confusão”, alerta Jaqueline.

Panorama brasileiro

De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, o Brasil é o segundo país que mais realiza cirurgias bariátricas, atrás apenas dos Estados Unidos. De 2011 para 2018, o número de procedimentos registrados pelo DataSUS e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) passou de 34,6 mil para 63,9 mil. Um crescimento de 84,7%. Embora o número tenha diminuído durante os dois últimos anos, em virtude da pandemia da Covid-19, o tema continua relevante.

Solange Bettini: a obesidade ainda é uma
doença mal compreendida pela sociedade

Segundo a pesquisa Vigitel 2021, conduzida pelo Ministério da Saúde, 57,25% dos brasileiros estão com sobrepeso. E o índice de obesidade está presente em 22,35% da população.

A médica Solange Cravo Bettini, chefe da Unidade de Cirurgia Bariátrica do Hospital de Clínicas (UFPR), explica que cada organismo possui características genéticas que fazem com que a quantidade de alimento ingerido (pouco ou muito) torne-se ou não aumento de volume corporal. Para a especialista, a obesidade ainda é uma doença mal compreendida pela sociedade – principalmente quando se observa a pressão social e a carga emocional geradas pelo culto ao corpo e pelo ideal que costuma ser mostrado pela mídia.

A quem se destina a cirurgia bariátrica

Com base na Portaria nº 424/2013, o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina estabelecem as seguintes indicações:

a. Indivíduos que apresentem IMC de 50 Kg/m² ou mais;

b. Indivíduos que apresentem IMC igual ou superior a 40 Kg/m², com ou sem comorbidades, sem sucesso no tratamento clínico, por no mínimo dois anos.

c. Indivíduos com IMC maior que 35 kg/m² e com comorbidades, tais como pessoas com alto risco cardiovascular, Diabetes Mellitus e/ou Hipertensão Arterial Sistêmica de difícil controle, apneia do sono, doenças articulares degenerativas, sem sucesso no tratamento clínico longitudinal realizado por no mínimo dois anos e que tenham seguido protocolos clínicos.

A quem não é recomendada a cirurgia bariátrica

a. Pacientes com limitação intelectual significativa, sem suporte familiar adequado;

b. Quadro de transtorno psiquiátrico não controlado, incluindo uso de álcool ou drogas ilícitas; no entanto, quadros psiquiátricos graves sob controle não são contraindicativos obrigatórios à cirurgia;

c. Doença cardiopulmonar grave e descompensada que influencie a relação risco-benefício;

d. Hipertensão portal, com varizes esofagogástricas; doenças imunológicas ou inflamatórias do trato digestivo superior que venham a predispor o indivíduo a sangramento digestivo ou outras condições de risco;

e. Síndrome de Cushing decorrente de hiperplasia na suprarrenal não tratada e tumores endócrinos.

A Portaria descreve, ainda, critérios relacionados à idade e de risco-benefício. E destaca que tanto o paciente quanto seus responsáveis devem compreender todos os aspectos do tratamento e assumirem o compromisso com o segmento pós-operatório, que deve ser mantido por tempo a ser determinado pela equipe.

Trabalho em equipe

As cirurgias para o tratamento da obesidade começaram a ser realizadas no Brasil na década de 1970. Entretanto, somente em 2005 passou a ser obrigatória a atuação de uma equipe multidisciplinar para acompanhar o paciente antes e depois da cirurgia.

Gisele Farias é categórica quando afirma que o acompanhamento multidisciplinar é parte fundamental do sucesso do tratamento. E que não há um tempo exato ideal de duração, pois varia conforme o quanto o indivíduo está preparado (sob ponto de vista médico, nutricional e psicológico) para o procedimento. “Existem pacientes que já realizam acompanhamento multidisciplinar há anos para o tratamento da obesidade, e. nesses casos, o tempo para realização dos exames pré-operatório já é suficiente. Por outro lado, já tive pacientes que precisaram de seis meses a um ano de acompanhamento nutricional antes da cirurgia”, conta.

Após o procedimento, o trabalho dos profissionais continua. A cirurgiã Solange Bettini enfatiza que esse acompanhamento “melhora a qualidade do emagrecimento e uma melhor aceitação das mudanças corporais e equilíbrio emocional para adaptação ao que, muitas vezes, os psicoterapeutas chamam de um renascimento”.

Do ponto de vista psiquiátrico e psicológico, os principais aspectos trabalhados no pós-operatório são as expectativas do paciente (o que esperava e a adaptação às mudanças na rotina) e a relação com o ato de comer, que costuma estar associado a um grande prazer. Num primeiro momento, é comum o sentimento de “lua de mel”, quando começa a perda de peso e a autoestima se eleva. “Na grande maioria dos casos, é como se aquilo fosse o único problema da vida, o peso. O que a gente tem que trabalhar é puxar esse paciente para a realidade. Que, sim, é algo importante para as saúdes física e emocional, mas que, apesar disso, a gente ainda vai ter problemas, situações desafiadoras na nossa vida pessoal, familiar, profissional. Muitas vezes, a gente projeta muitos problemas em função do peso. E pode não ter nada a ver com isso”, revela o psiquiatra Gustavo.

“A terapia pós-bariátrica ajuda o paciente a perceber o que o leva a comer, e tratar essa causa, mantendo, assim, a perda de peso que a cirurgia o proporcionou! Ele aprenderá a se conhecer, a lidar com os sentimentos, encarar situações ruins, e principalmente ver a comida de outra maneira”, comenta Jaqueline. O acompanhamento psicológico também pode ser um suporte nos casos em que o paciente não consegue contar com o apoio familiar ou dos amigos para a manutenção nos novos hábitos.

A psicoterapia ganha ainda mais relevância para que a pessoa possa enxergar além da questão corporal e passe a estimular outras coisas em sua vida, como um hobby, um esporte, o trabalho, momentos de lazer com outras pessoas.

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