Momento apocalíptico ou oportunidade de transformação?

Momento apocalíptico ou oportunidade de transformação?

A situação pandêmica por si só é causa de angústia, insegurança e ansiedade, mas também pode se constituir em oportunidade

     Guerra, fome, doenças.  Em seu livro Homo Deus: uma breve história do amanhã, Yuval Noah Harari, mostra grandes pesquisas e aponta alguns caminhos que a humanidade parece começar a trilhar, como quem já venceu as guerras, a fome, a extrema pobreza e a peste. O livro parece soar que o grande momento apocalíptico é justamente o do homem que, vencendo tudo isso, começa a tornar-se Deus. O avanço da robótica, nanotecnologia, neurociência e tudo o mais fez cair o medo de outra grande guerra atômica e nos transportou para a possibilidade de uma transformação radical de tudo o que consideramos “humano”.  No entanto, vem um vírus, um pequeno vírus, e muda um pouco (ou, talvez, bastante) essa perspectiva.

       Como poderíamos entender esse momento que toda a humanidade passa dentro de um ponto de vista arquetípico? Junguiano? Fora todos os cuidados que possamos ter com a quarentena, com o trabalho home office, com nosso corpo e nossa mente? Qual o sentido que isso pode ganhar em nossas questões pessoais e profissionais de modo que nos faça sair, depois dessa crise, mais fortalecidos, mais conscientes? Melhores do que quando entramos? 

        Carl Gustav Jung, um psiquiatra suíço, falecido na década de 1960, pode nos apontar alguns caminhos. Ele se aprofundou muito na simbologia alquímica, uma espécie de jornada do herói, cujo objetivo maior é a autotransformação.  Em seus estudos, Jung buscou mostrar o significado oculto dessa simbologia e sua importância no caminho daquilo que ele chamou de individuação, a realização do ‘si mesmo’, do encontro com nossa essência.

        Segundo Sonia Regina Lunardon Vaz, psicóloga analítica junguiana e
psicoterapeuta corporal Godelieve Struyf-Denys, uma análise junguiana deverá contemplar o arquétipo a que se refere à pandemia e à situação global em termos de coletividade.  “O arquétipo que parece se relacionar com a pandemia da Covid-19 é uma das fases da Alquimia, explica ela.

        Jung compreendeu a Alquimia como sendo um processo de individuação, ou melhor, um processo de autoconhecimento e de metamorfose a partir de uma nova percepção do mundo e de si mesmo. De acordo com Sônia, “a experiência alquímica se inicia com a Pedra também chamada de prima matéria, que deverá se abrir para receber mercúrio, a partir daí essa Pedra irá passar por várias fases, dentre elas a da Putrefação ou Mortificação que ocorre no ventre da Terra, fazendo parte de um processo chamado de Coagulação, até atingir sua transformação para, enfim, se tornar a Pedra Filosofal”.

Oportunidade

     É importante observar que a Pedra do início (o indivíduo, no caso) é apenas uma rocha bruta e sem conhecimento. É o desejo de transformação que faz com que se abra para o metal mercúrio. No final do processo, que passa por sete fases, a Pedra, então, se torna filosófica, porque adquiriu conhecimento e agora está de acordo com os instintos e a razão numa composição que a faz ser sábia.

      Essa “Pedra” é entendida como sendo o Ego (nossa consciência) que deseja o autoconhecimento e a transformação, por isso se abre para receber Mercúrio, tido aqui, na simbologia, não apenas como o elemento, mas também como o deus romano com esse mesmo nome, ou Hermes para os gregos. A psicóloga lembra que, considerado um mediador entre todos os deuses, só a Mercúrio é permitida a entrada e a saída do Hades, o inferno na mitologia. O que no caso da interpretação junguiana seria o nosso inconsciente. Um território sombrio e desconhecido pelo Ego.

“Nessa articulação, entre consciente e inconsciente, o Ego passa pela fase da Putrefação em que os elementos químicos que foram separados na fase anterior, apodrecem, surgindo um material escuro e altamente profícuo feito um adubo, de onde surgirá uma nova composição dos elementos, para então ocorrer o novo renascer em sua melhor forma’’, ressalta Sônia.

     Ela destaca que a interpretação de conteúdos psíquicos, significados no processo psicoterápico, nessa fase, são mortos, não têm mais vida, mas ainda servem de adubo para que ocorra uma ressignificação de si mesmo e do mundo. “Os elementos opostos se unem trazendo uma nova gama de conhecimento instintual e racional não mais dualista, mas sim de multiplicidade em que se reconhece e se acolhe todas as diferenças sem tabus ou fronteiras”, conta.

     Essa terminologia poderá ser melhor compreendida por quem já passou por uma fase de terapia ou está mais afeita às simbologias inseridas nos mitos. De qualquer modo, nos permite uma reflexão de processos internos.  “Essa fase, conhecida, por Putrefação, é a mais negativa das operações e encontra-se vinculada às derrotas, torturas, mutilações, morte e apodrecimento. Ou seja, nossas dores e perdas, físicas e reais e/ou psicológicas e simbólicas”, destaca.

     Todas essas mesmas imagens sombrias, destaca Sônia, podem levar às mais sublimes, como ao crescimento, à ressurreição e ao renascimento. Como a força e a luz que emergem em meio à dor e a desolação.  “Reportamo-nos à concepção de que a putrefação precede à toda e qualquer geração de uma nova forma de existência, ao anular a velha natureza transmutando-a em nova”, explica.

     Para a psicóloga, o advento dessa pandemia é uma grande oportunidade para se fazer a individuação tanto individual quanto coletiva. “Infelizmente, não acredito que ela se faça no coletivo, mesmo porque as Pedras que existem e que estão no poder, principalmente na política e nas corporações, nem sonham em se abrir para a transformação, tudo o que desejam é o poder. O Ego entre essa gente encontra-se inflado, nada é melhor do que ele; e ninguém, em sua concepção, poderia lhe proporcionar maior sabedoria porque, em seu entendimento, ele é o suprassumo da natureza”, acredita.

Crise

      A psicóloga não tem dúvida que esse momento é de mortificação.  “O desemprego e a desassistência já faziam parte de nosso cotidiano. Para falar somente do Brasil, temos 82% de pessoas que trabalham de salário em salário sem possuírem uma reserva para emergências”. Por outro lado, a grande maioria trabalha na informalidade. Sônia não acredita que existe uma solução fácil para nós. “Talvez a situação de pandemia possa criar, não pela reflexão, mas pela necessidade, um comportamento grupal de indignação que se faça ouvir e transformar nossa sociedade pautada no monetarismo. Espero que esse movimento possa acontecer de modo organizado e não de modo caótico, sem a devida reflexão, sabedoria e estratégia clara e organizada”, salienta.

     Individualmente, ela acredita que o caminho é o Ego estar conectado ao inconsciente, o que produz a sensibilidade aliada à razão para, desse modo, não sofrer a depressão passiva, a virulência do descomedimento, nem a loucura do pânico. “Numa tempestade marítima devemos nos agarrar ao mastro mais forte do navio e lá esperar passar a tormenta. Nesse estado em que estamos, é importante uma profunda reflexão que possa nos levar a reconhecer nossa potência e força, não apenas como indivíduo, mas também como sociedade”, analisa.

     A sociedade ou a (s) pessoa (s) que emergirá depois dessa crise dependerá de como iremos atravessar esse mundo monetarista em que vivemos. “Se conseguirmos nos organizar como indivíduo e sociedade para impor nossos direitos frente aos ‘donos do mundo’, faremos um mundo mais solidário, mais cooperativo e sem fronteiras diante das diferenças. Afinal, todos somos habitantes do planeta Terra. Como a Covid-19 demonstra, não existe fronteiras de nacionalidade, cor, poder aquisitivo, partido político, ideologia, religião e de gênero. A Covid-19 nos mostra que somos iguais, que somos todos da mesma espécie”.

     Sônia lembra que os conflitos que existem entre os povos, entre pessoas da mesma região, a disputa de poder que se vê e se sofre no macro e no microcosmos foi relativizada pelo vírus. “Cabe a nós, agora, superar tudo isso e criarmos um universo de cooperação e acolhimento. Caso isso não venha a acontecer, o processo de escravidão que já conhecemos e vivemos será ainda mais acirrado, mais descarado do que nunca e o choro será livre”, analisa.

     Para ela, os pilares de sustentação do mundo que conhecemos são religião e política.  No entanto, acredita que é hora de discutir-se, por completo, esses pilares, reforçando outros, como o de cooperação e solidariedade, bem como os de sustentabilidade, ciência e tecnologia.  “De modo que política, religião e dinheiro possam estar à serviço da população, não ao contrário”, defende.

     Quem sabe, se ao final de tudo isso, a nova ordem mundial não seja aquela que permita os indivíduos não mais se deixar levar pelos ditos influenciadores – não raro, marcados com certa dose de psicopatia-, e sim pelo consenso do coletivo?  

Transformação

     A psicóloga destaca que a situação pandêmica por si só é causa de angústia, insegurança e ansiedade. “Afinal, estamos diante da morte. Isso é um fato e não uma narrativa. O medo é uma defesa do organismo contra o aniquilamento. Se ficarmos concentrados somente nele não nos capacitaremos para a ação. Se eu não correr na savana serei morta por outro animal faminto. O meu medo não pode me paralisar, senão o fim será o mesmo. Ele deve funcionar como um gatilho para a ação de defesa”, lembra.

     O isolamento social e todos os cuidados que se fazem necessários nesse momento podem não ser fáceis, no entanto, também se constituem em oportunidades para o refletir. Dessa vez, sem subterfúgios, uma vez que não há para onde fugir. O espaço está ali, diante da gente a todo momento.

     Por isso, nessa fase, o encontrar-se e reinventar-se é tão importante. Nas relações dentro de casa, nas brincadeiras com as crianças e os adolescentes, na relação com os demais familiares e consigo mesmo.  “É diante da morte que encontramos a força necessária para viver”, destaca Sônia.

 Primeiro passo

       E você? Como tem se cuidado nesses dias de quarentena, serviço home office e cia? Se precisar, não deixe de buscar ajuda. Há várias formas. Inclusive o atendimento psicológico on-line. Conhecer-se mais é um primeiro passo.  Busque o bem-estar e mantenha em equilíbrio.  Segundo alguns autores, você pode utilizar o cérebro de forma que ele possa ser um fator para imprimir felicidade e bem-estar em sua vida, em suas rotinas. Ajudando você (e não atrapalhando, como sabotador) no enfrentamento da ansiedade, do estresse, da depressão e da frustração.

       Um exemplo é utilizar-se do que se denomina hoje de inteligência positiva, que é a capacidade de o cérebro nos ajudar na conquista dos nossos objetivos e também do gerenciamento das nossas emoções, enfraquecendo nossos sabotadores e, ativando, o que se chama de nosso sábio interno.  O conceito foi difundido por Shirzad Chamine, autor do “Inteligência Positiva – porque só 20% das equipes e dos indivíduos alcançam seu verdadeiro potencial e como você pode alcançar o seu”.

         Sabe aquela velha história do anjo e demônio em nós, ou dos dois lobos famintos?  Pois bem. O conceito defende que temos isso dentro da gente. De um lado, nossos sabotadores, do outro, nosso sábio, nosso amigo.   E a inteligência positiva pode medir quem está ganhando o jogo, na maior parte do tempo.  O conceito é fruto de estudos das áreas de neurociência, ciência organizacional e psicologia positiva.

     Quer fazer o teste? Conheça seu  coeficiente  (quociente) de Inteligência Positiva (QP) e os sabotadores da sua mente, acessando esse link. E mãos à obra, o negócio é buscar ser feliz. Conheça-se mais e, se precisar, busque ajuda.

Sônia Lunardon Vaz

Psicóloga Analítica Junguiana e Psicoterapeuta Corporal Godelieve Struyf-Denys 

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/sonia-lunardon-vaz-40903a34

SHARE